A apreciação da obra premiada, O silêncio solar das manhãs, na sessão de entrega do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2013, esteve a cargo de José-António Chocolate, que falou em nome do júri, discurso que aqui se reproduz.
Discípulo
dileto do poeta e escritor José Luís Peixoto, o poeta António Canteiro não só
se serve dum excerto do seu livro A
criança em ruínas, para citação e enquadramento do seu trabalho (“o silêncio solar das manhãs”) como
procura alicerçar – e porque não, até estruturar – nessa frase, que se torna um
verso bonito, toda a evolução do texto que nos apresenta. Afinal um texto feito
de tantos outros encadeados e em harmonia, que exaltam profusamente a natureza – “sabes de cor, as correntes frias do
mar, o troar do vento e da tempestade. sabes de cor, a zina quente da tarde e o
calor das noites de luar, no teu corpo aveludado”; “giesta,
amarela-verde-flor. se a brisa quiser, dobra-te na beira da estrada”.
E
assim António Canteiro nos fala dos ribeiros, dos rios, do mar, da praia, dos
campos e dos lugares, cantos e recantos, de hábitos e costumes, enfim tudo o
que povoa e dá vida ao seu imaginário, cheio de cores e de sonhos, onde se
respira uma atmosfera mística, também ela feita de recordações e de memórias – “se à noite, mãe!, a pele das mãos, ninho
cravado de rugas, teias de silêncio, a dormir no regaço, eu te ouvir rezar”;
“antigamente, soprava o vento sobre a telha vã e nos pomares despidos de
folhagem”.
Sendo
o António Canteiro o pseudónimo
predileto do autor, João Carlos Cruz, com obra publicada e premiada, a qual
regista um percurso literário mais virado para o texto em prosa, não é de
estranhar que “Rosa Cravo” (pseudónimo
apresentado a concurso neste Prémio) se tenha sentido mais à vontade na opção
tomada por uma escrita que perfilha uma estética sóbria de texto corrido e
compacto, enquadrado naquilo a que se pode chamar de prosa poética.
Mas
desengane-se quem se fica apenas pela impressão visual do texto, porque se
trata de verdadeira poesia, de boa poesia, a que não faltam: a) eloquentes e
pertinentes metáforas – “um velho não é senão um menino que brinca
ao redor do silêncio”; “pinto ao longe o horizonte, da mesma cor da chama, que
te arde no peito”; “ao fundo, distante do rio, uma luz treme sobre as pedras e
deita-se, em fios, na estrada de acácias”; “olho com espanto a esteva e a
simetria da flor, na harmonia de tons verdes, de folhas cerzidas na côdea dos
dias” ; b) felizes imagens – “erguido
no cômoro do ribeiro. ufano. entre ervas daninhas. areias e águas turvas.
majestoso lírio-rei brasonado, trajado de cetim”; “era no cais, quando a tarde
morria, o velho cata a névoa de olhos espetados no céu, tinha a face coada de
rugas e os lábios de cor púrpura”; c) uma harmonia encadeada e suportada
mais pela aliteração do que pela rima. E tudo isso, intencionalmente explorado
em direção a um final que aprofunda a ideia inicial e mais que tudo nos
questiona enquanto a si próprio se questiona com um pendor dialético, próprio
de quem procura mais que o conhecimento superficial das coisas.
Nota-se
que, em O silêncio solar das manhãs,
é propositada a forma escolhida, contrapondo-se à substância duma poesia feita
de versos serenos e coloridos, uma escrita irreverente que rompe com os cânones
gramaticais.
[Na foto: José-António Chocolate em nome do júri.]
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