«Assim como se
podem escrever asneiras com uma máquina de escrever do último modelo, se podem
fazer disparates com os sistemas e aparelhos mais perfeitos para ajudar a não
fazê-los. (…) O verdadeiro processo é pensar; a máquina fundamental é a
inteligência.»
Fernando
Pessoa
A minha primeira nota é sobre a
relação de Pessoa com a palavra e recorre a uma frase de Bernardo Soares: “O
que sinto é (sem que eu o queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que
penso está logo em palavras.”
Nenhum ser humano, creio, mais
do que Fernando Pessoa, explicou e se explicou tanto através da palavra
escrita. É o caso quando, na sua condição de empregado de escritório e, em
curtos períodos, pequeno empresário, escreve sobre temas de Administração.
Antes de mais, eis o que
sempre lembro quando falo de Pessoa. Nos seus diversos heterónimos, e também em
cada um deles, ele manifesta, com consciência do facto, pensamentos de sinal
contrário. A sua natureza obrigava-o à procura das oposições, nas diversas
abordagens de que foi capaz em direcção à Verdade. Portanto, ninguém, ao
atravessar a imensidade da obra pessoana, pode encontrar princípios rígidos, a
não ser a sua repulsa pela ausência de escrúpulos e o seu ódio à
auto-suficiência dos medíocres.
Não vou ocupar-me a falar das
andanças de Pessoa empregado de escritório - como o foi Elliot, num banco, e Kafka,
nos seguros -, tradutor e correspondente de línguas, de empresa para empresa,
de escritório para escritório, sem vínculos absolutos de tempo inteiro, ou dos
seus conselhos e ideias sobre a actividade comercial, correspondência, arquivo
e Contabilidade, que começa a aprender, adolescente, na Commercial School, em
Durban, onde frequentara o ensino secundário; ou da sua invenção da carta para
evitar o sobrescrito no envio; ou dos seus trabalhos em Publicidade – indústria
que abrigou Scott Fitzgerald e Erich Maria Remarque e, em Portugal, por
exemplo, Alexandre O`Neill e Ary dos Santos e da sua noção do que se chama hoje
Investigação dos Mercados.
Vou tocar, porém, um pouco,
nas suas tentativas de ser empresário. Sobre estes assuntos há já obras
escritas que, decerto não esgotando o que há a dizer, dão informações e
interpretações bastantes.
E procurarei, sim, chamar a
vossa atenção para o que pensou Pessoa sobre algumas matérias que têm a ver com
Administração – hoje fala-se de Gestão –, com Organização, com Teoria e
Prática, das regras de vida que se aplicam ao chefe, ao que mais ou menos manda,
do que é o saber trabalhar e de certas questões das Relações Humanas.
Antes, porém, é preciso saber
quem era o homem Pessoa. A personalidade de Pessoa é marcada por um extremado
individualismo, traço que de modo nenhum significa insensibilidade perante o
Outro ou despreocupação perante o que considerava injusto, fosse qual fosse a questão
em causa.
A sua matriz de educação e
instrução faz dele, no plano da Economia, um defensor da livre empresa, contra
qualquer autoritarismo; o seu modo de estar perante a comunidade faz dele um
nacionalista, em minha opinião pelo seu misticismo, mas um nacionalista que
ridiculariza qualquer forma de provincianismo.
Fernando Pessoa era um homem
rigoroso no trabalho, literário ou de escritório. Cumpria as tarefas que a si
mesmo impunha e a elas se entregava; não era, porém, desejoso de carreiras
profissionais com o objectivo de obter grandes rendimentos. Preferia a
liberdade no governo do seu quotidiano à segurança dos vínculos de um emprego. “Tenha
paciência, Manuel da Hora, mas eu não estou para chatices”, disse, perante o
convite para um estágio profissional em Madrid. Ele queria, apenas, o
indispensável para uma vida de razoável conforto e fez sóbrias contas sobre
isso. Quase todo o tempo da sua vida profissional está marcado por pequenos
empréstimos e vales à caixa nos escritórios onde trabalhava. Pessoa, um ser
fechado no convívio do dia-a-dia, teve alguns amigos, mas não era cândido em
relação às afeições: “poucas pessoas são capazes de ser amigas de alguém”,
escreveu.
Dito isto, estranhar-se-á que
Pessoa tivesse querido ser empresário. É simples perceber porquê. As suas
tentativas visavam, basicamente, possibilitar os seus planos editoriais – a
Íbis, tipografia e editora, onde gastou a apreciável herança que recebera; F.
A. Pessoa, onde teve sócios, casa de comissões e consignações, depois trespassada.
Funda, mais tarde, a Olisipo, Agentes, Organizadores e Editores, de que é
Director e coproprietário, e lhe mereceu o mais cuidado planeamento.
No quadro deste trabalho, Pessoa
comentou a “falta de cultura dos editores e a sua falta de organização como
industriais”, calculou a percentagem da população que sabia ler e lia, de
facto, procurando, até, quantificar os que compravam livros bons; e sublinha,
ainda, a não “coincidência perfeita entre a parte mais culta e mais rica da
sociedade”. Por fim, cria a F. N. Pessoa, onde tenta prosseguir a Olisipo.
Fernando Pessoa foi um homem de
múltiplas leituras, de interesses variados, para a sua curta vida de 47 anos. Refiro
isto porque, ao contrário do que alguns pensam, nem todos os artistas, seja
qual for a sua arte, são espíritos cultos.
De qualquer modo, as lacunas de
cultura política que Pessoa tinha ou quis ter, e transparecem na sua visão do
Mundo, são combatidas por um espírito interrogador, que o leva a interessar-se,
por exemplo, pelo Anarquismo como conceito da vida política, e pela ligação
entre o sentido organizador global, o planeamento, ao progresso da Sociedade.
Daqui a sua leitura de Walther Rathenau, o célebre industrial e Ministro da
República de Weimar, que assinou o Tratado de Rapallo, em 1922, com a União
Soviética, assassinado pela extrema-direita alemã.
Uma observação de Pessoa,
homem de cultura britânica, que muito preza o Comércio como instrumento de
relação e, portanto, no seu papel cultural, disseminador, diz-nos “o inglês é,
por exemplo, mau organizador, mas há tanto tempo que é comerciante e industrial
que faz por instinto e por intuição o que o alemão ou o americano fazem por
aplicação da inteligência – isto é, por organização.”
Abordo, agora, as questões da
Organização como preocupação importante do cidadão Pessoa e do profissional
Pessoa.
A Organização, que o
Capitalismo elevara a conceito máximo para o crescimento das empresas; a
Organização, que Lenine considerava fundamental para o triunfo da Revolução de
Outubro e elogiava nos Alemães e nos grandes capitães de indústria
norte-americanos. As suas palavras sobre Teoria e Prática, nítidas como não li
outras sobre o assunto, são adequadas para introduzir o tema Organização.
Ao lê-las, lembro-me sempre da
síntese genial do prodigioso Kurt Lewin – um alemão Professor de Psicologia e
Filosofia da Universidade de Berlim até 1932, ano em que escapou do regime nazi
para trabalhar nos E.U.A. -: “Não há nada mais prático do que uma boa teoria”,
que foi a minha frase introdutória sempre que as necessidades de ofício me
obrigavam a falar do tema em espaço de aula, e o pensamento que muitas vezes
presidiu ao meu trabalho quotidiano.
Eis, então, as palavras de
Pessoa que aqui quero deixar: “Só os espíritos superficiais desligam a teoria
da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a
prática não é senão a prática de uma teoria. Quem não sabe nada de um assunto
(…) chama teórico a quem sabe mais (…). Quem sabe, mas não sabe aplicar – isto
é, quem afinal não sabe, porque não saber aplicar é uma maneira de não saber –
tem rancor a quem aplica por instinto. Mas, em ambos os casos, (…) há uma
separação abusiva. (…) Na vida superior, a teoria e a prática completam-se.
Foram feitas uma para a outra.”
Quando Pessoa alude “a quem
aplica por instinto” e acerta, alude a quem passou a prova da experiência, mas
a quem falta a compreensão do porquê. Não resisto a deixar, também, uma nota
passageira sobre o uso da palavra rancor.
Traduz, decerto, que sentiu fortemente, em alguém, a sua manifestação.
A preocupação de Fernando
Pessoa é a de alguém que percebe não poder o Homem, ao aprender, prescindir
quer da reflexão quer do exercício acerca das questões que enfrenta. É por isto
que ensinar é ensinar a pensar e quem não o sabe fazer não ensina, de facto.
Pessoa sabe que teoria
significa observar, examinar. É a observar que pensamos; observando sempre,
pensando o que se observou e, ao pensar, observar melhor, é a sequência do
conhecimento.
Este assunto, deixem-me dizê-lo,
em parêntesis, alguns chamados de pouco letrados compreendem, por funda
qualidade própria, e outros, ignorantes letrados, nunca entendem.
A Organização, nota Pessoa,
não deve ter a tentação do excesso de disciplina. Escreve ele: “Parecemo-nos muito
com os alemães. Como eles agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os
outros agem.” E, mais à frente (não resisto, neste momento que atravessamos, a lembrar),
escreve: “Esperamos sempre pela voz de comando. (…) Como os alemães, nós
compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina
superficial, de crianças que brincam à vida. Refilamos só de palavras. (…) Somos
incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma ‘revolução’ foi para
implantar uma coisa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a
brandura com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que
nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das
consciências. Ficámos, miserandamente, os mesmos disciplinados que éramos. Foi
um gesto infantil, de superfície e fingimento.”
Sobre a Organização, ainda
outra observação inicial, que se prende com o chefe, o gestor: “Organizam-se
organizações de modo a organizar, também, organizadores”. Pessoa escreve-a para
sublinhar duas coisas: por um lado, que o chefe da organização não pode ser
posto em causa, constantemente, pelos chefes dos diversos órgãos; por outro,
que não há hierarquia de funções, só há hierarquia de cargos.
Fernando Pessoa escreve sobre
a organização de Portugal, destaca a obra de Pombal, e lembra que o País cai
por não ter prosseguido o desenvolvimento industrial e comercial que este
estadista inaugurou.
Ele tem o conceito do que hoje
chamamos consultoria – exprime-se como consultor e pensador de estratégias: avança
projectos sobre concentração industrial e uma empresa de exportação de produtos
portugueses. Pessoa insiste em que, para um país atrasado como Portugal, só há
uma transformação possível, a transformação profissional no sentido da
“industrialização sistemática do País”.
O seu texto dos projectos é enviado
a Ramires dos Reis, administrador da Companhia Industrial de Portugal e
Colónias, que o elogia mas não considera “realizável na prática”.
E sobre a figura do Chefe? Que
qualidade básica deve ter aquele que é chefe, sendo que o chefe é o que quer
vencer? Eis o que Pessoa nos diz: “Para vencer – material ou imaterialmente –
três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades
e criar relações. O resto pertence ao elemento indefinível, mas real, a que, à
falta de melhor nome, se chama sorte.
Não é o trabalho, mas o saber trabalhar, que é o segredo do êxito no trabalho;
saber trabalhar quer dizer: não fazer um esforço inútil, persistir no esforço
até ao fim, e saber reconstruir e saber reconstruir uma orientação quando se
verificou que ela era, ou se tornou, errada. Aproveitar oportunidades quer
dizer não só não as perder, mas, também, achá-las.(…) Tudo mais é herdar do tio
brasileiro ou não estar onde caiu a granada. (…) Da simples vontade vivem só os pequenos
comerciantes; da simples inspiração
vivem só os pequenos poetas.”
Dediquei algum tempo, para
ganhar alguma compreensão do trabalho, a reflectir sobre o que me aconteceu na
vida profissional: O que aprendi como cumpridor de normas de acção; como me
desempenhava quando me tornaram mais e mais autónomo; o que fiz quando, nomeado
gestor, tive de aprender a sê-lo? O que pude fazer quando fui (como me
chamavam?) Director ou lá o que era?
O que aprendi foi a olhar o outro,
a olhar-me com o outro e a tentar olhar o outro comigo, a ver uns com outros.
Tive de falar, em contexto de
Ensino, sobre Chefia, Liderança, Comportamento Organizacional, Dinamização de
Recursos Humanos. Tive, obviamente, de estudar autores extraordinários,
palavras sábias de grandes condutores de homens na vida política e militar; e
tive de folhear, também, textos patetas de aldrabões sobre triunfos
instantâneos na vida pessoal e profissional, como é natural entrecortados de
conselhos sensatos que no dia-a-dia ouvimos de muitos e cujos livros inundam de
estupidez e falta de escrúpulos, livrarias e outros locais de venda de
materiais impressos. Ora leiamos Pessoa: “Estão cheias as livrarias de todo o
mundo de livros que ensinam a vencer.
Muitos deles contêm indicações interessantes, por vezes aproveitáveis. Quase
todos se reportam, particularmente, ao êxito material, o que é explicável, pois
é esse o que supremamente interessa à grande maioria dos homens.”
Pouquíssimas vezes li observações
tão desafiantes, tão fundas como as que Pessoa nos deixou sobre regras de vida,
regras morais, de comportamento a seguir por um chefe, que referiu como “um
dependente”, na medida em que “precisar de dominar os outros é precisar dos
outros”.
Todavia, ao falar de “grande
homem”, no sentido de líder, Pessoa acentua: “é o que impõe aos outros o seu
próprio sonho, os seus próprios sonhos. Para lhes impor os seus próprios sonhos
tem, por isso, que sonhar sonhos que eles tenham, de certo modo, entressonhado,
para que deveras eles possam recebê-los”. Pessoa, de novo, em “Notas para uma
regra de vida”: “1 - Cada um de nós não tem de seu nem de real senão a própria
individualidade. 2 – Aumentar é aumentar-se. 3 – Invadir a individualidade
alheia é, além de contrário ao princípio fundamental, contrário (por isso mesmo
também) a nós mesmos, pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde
ganhamos. (Por isso o criminoso é um débil, e o chefe um escravo. O verdadeiro
forte é um despertador, nos outros, de energias deles. O verdadeiro Mestre é um
mestre de o não acompanharem). 4 – Atrair os outros a si é, ainda assim, o
sinal da individualidade.” E, em regras morais: “Nunca afirmar que, em
determinadas circunstâncias – inexperimentadas para vós – agireis de
determinada maneira. Nunca dar opinião imediata sobre uma coisa, a não ser que
seja directamente resolúvel segundo princípios fixos. “
Acentuo, em sequência, o que,
na minha vida de consultor e de aulas, transmiti, por tê-lo aprendido: um
gestor é alguém que não só vê mas olha e, ao olhar, provoca o olhar dos que com
ele trabalham. Há uma bela frase de Pessoa relacionada com o que acabei de
dizer: “Transmitir movimento é, pois, ou transmitir vida ou despertar vida”.
O pensamento do autor do Livro do Desassossego é implacável com a
questão da responsabilidade, que é questão historicamente desprezada em
Portugal, desprezada à náusea. Ora o mais simples chefe ou o mais importante
gestor ou entende o carácter intrínseco da responsabilidade nessa sua qualidade
ou não o é, de todo. Ser chefe não é “a piada sempre inoportuna e a alma fora
do universo em seu conjunto”. Como escreve Pessoa: “É do pior gosto, e do pior
efeito, desculpar-se um chefe com um erro dum empregado. Não há erro de
empregados. Todo o erro dum empregado é apenas o erro de ter empregados que fazem
erros”.
Que significa este precioso
comentário? Que, para além dos erros, o chefe deve saber seleccionar quem possa
não errar ou errar o menos possível, saber preparar o empregado para não errar,
isto é, dar-lhe Formação, ter a noção do que é Responsabilidade, coisa que não
se delega. Quando Pessoa escreve notas para regras de vida, regras morais, ele
está a dizer como pensa que deve agir quem hoje se chama um gestor.
Já referimos que Pessoa foi moldado pela ideia da livre
empresa, do patrão. Contudo, olhava os donos das empresas de modo diferenciado
e distinguia aqueles que possuíam uma empresa e ganhavam o lucro apropriado dos
milionários. Sobre eles, escreveu o seguinte: “Nunca nenhum homem se
tornou milionário pelo trabalho árduo ou inteligência. No pior caso, ele
tornou-se nisso por uma imensa e imaginativa falta de escrúpulos; na melhor
hipótese pela feliz intuição em circunstâncias especulativas”. E, em particular
sobre milionários americanos, expressa-se assim: “Sois uma tão completa
zoologia de bestas que a garganta recusa elevar-se por desdém completo”. E mais
à frente: “A vossa espécie polui tudo o que toca, e a doutrina que guia o
místico indiano a não matar uma mosca guia-vos a não deixarem viver os homens.”
Mais directo e claro é impossível. É a lucidez de que Álvaro de Campos se
vangloria. (Eu sei que Pessoa,
sempre preocupado com a desgraçada mentalidade do meio empresarial português, reproduziu
as normas industriais do milionário Henry Ford. Uma delas dizia: “O salário
justo é o salário mais alto que o patrão pode pagar regularmente”. Norma que
desvenda o seguinte: nem todos os milionários eram como Ford. Eu sei que Pessoa
deixou escrito “As empresas comerciais e industriais participam do estado moral
das sociedades a que pertencem”).
Fernando Pessoa nunca
desprezou o mundo do escritório ou olhou com superior indiferença a vida
empresarial. Bem ao contrário. São conhecidos os seus notáveis comentários
sobre Comércio e Cultura.
Alexander Search, portanto Fernando
Pessoa, escreveu: “Jamais existiu alma mais afectuosa ou terna do que a minha,
alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor.
Porém, nenhuma alma é tão solitária como a minha”. Bernardo Soares, portanto
Fernando Pessoa, escreveu: “Foi-se hoje embora, diz-se que definitivamente,
para a terra que é natal dele, o chamado moço do escritório, aquele mesmo homem
que tenho estado habituado a considerar como parte desta casa humana e,
portanto, como parte de mim e do mundo que é meu. Foi-se hoje embora. No
corredor, encontrando-nos casuais, para a surpresa esperada da despedida,
dei-lhe eu um abraço timidamente retribuído, e tive contra-alma bastante para
não chorar, como, em meu coração, desejavam sem mim meus olhos quentes. Cada
coisa foi nossa, ainda que só pelos acidentes do convívio ou da visão, porque
foi nossa se torna nós. O que se partiu hoje, pois, para uma terra galega que
ignoro, não foi, para mim, o moço do escritório: foi uma parte vital, porque
visual e humana, da substância da minha vida. Fui hoje diminuído. Já não sou
bem o mesmo. O moço do escritório foi-se embora.
Tudo que se passa no onde
vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa.
Tudo o que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se
partiu. O moço do escritório foi-se embora. É mais pesado, mais velho, menos
voluntário que me sento à carteira alta e começo a continuação da escrita de
ontem. Mas a vaga tragédia de hoje interrompe com meditações, que tenho que
dominar à força, o processo automático da escrita como deve ser. Não tenho alma
para trabalhar senão porque posso com uma inércia activa ser escravo de mim. O
moço do escritório foi-se embora. (…) Hoje a tragédia é visível pela falta,
sensível por não merecer que se sinta. Meu Deus, meu Deus, o moço do escritório
foi-se embora.”
Este texto de superlativa
beleza do Livro do Desassossego,
conciso e denso, diz-nos, também, que a pomposa Gestão dos Recursos Humanos tem
de reconhecer em cada um de cada grupo de trabalho a mesma dignidade e o mesmo
poder de presença. ”Cada homem é um império”, na frase eterna de Saint-Exupéry,
acreditasse ou não Pessoa, se o conhecesse, no convite marxiano à transformação
do Homem.
____________________
[Texto
da palestra sobre “Fernando Pessoa e a Gestão, proferida por Maximiano
Gonçalves e promovida pela Associação Cultural Sebastião da Gama em 3 de
Novembro de 2012, na Biblioteca Municipal de Setúbal.]
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