Na sessão de entrega do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, ontem realizada em Azeitão, foi José António Contradanças quem interveio em nome do júri. É esse discurso que aqui reproduzimos. Mas o leitor pode encontrar mais comentários ao livro vencedor, Retrato a Sépia, se vier por aqui ou por aqui.
Apresentaram-se a concurso duzentos e trinta e quatro trabalhos. O júri, por unanimidade, escolheu como obra poética a premiar a que se apresentou com o número cento e sessenta e nove, de título “Retrato a Sépia”, assinada sob o pseudónimo de Paulo Lódão. E fê-lo, distinguindo “uma obra que se revela como um livro homogéneo, sequencial, interessante e guloso no desafio ao apetite à leitura. Estando perante uma poesia aparentemente simples, intuitiva, muito fresca e cativante, não deixa de nos marcar com mensagens profundas a partir de vivências tão sentidas e tão puras, que hoje teriam lugar na construção do tal “novo paradigma” que se reclama, fundado em valores que devem pautar uma sã convivência em sociedade (“Eram mais do que nossas mães, as árvores de fruto,”; “Sabem? A minha mãe não dormia enquanto eu não chegasse. / Entregava-me aos labirintos da noite e ela fazia arroz-doce.”; “O meu avô tinha a tez dos mouros e ar sereno/ de quem descasca laranjas pela madrugada. / Falava-me do mar como quem olha/ para os sulcos sibilinos das mãos.”; “Na sala do meu avô havia um búzio, havia o mar”).
É um livro de memórias que ruma à infância (“saio para a rua, / esse lugar chamado infância.”), a tempos idos (“Não sei, mas o meu pai/ clandestinamente abraçava as árvores. / Esqueci-me de lhe perguntar/ ao mesmo tempo/ que me esqueci de ser filho.”), fazendo-se dum encadeamento descritivo, duma sequência de retratos a sépia onde contrasta a vivacidade dos intérpretes, dos lugares e das acções, numa linguagem de grande riqueza metafórica (“…nós, seres humanos, somos uma mistura/ de árvore e de pássaro:/ precisamos de raízes, mas também de asas para irmos mais longe.”; “Pelas ruas da nossa aldeia formigavam os ecos das crianças, / os homens ganhavam calos de tanto sonharem com as mãos/ e as mulheres saboreavam o paladar da terra na planta dos pés”; “Caçava estrelas cadentes desnorteadas…”; “Eu sei, mãe, eu sei. / As palavras querem-se ao sol. / A poesia quer-se ao vento”; “o ar quente e quieto da tarde/ era uma porta”; “Pois, a minha avó tinha já a sabedoria dos pássaros ancestrais, / apesar do seu corpo mirrado albergar todo o peso das asas.”; “Cravando os punhos na massa, / a minha avó emprenhava o alguidar/ nas manhãs de sábado.”) e fazendo uso de imagens coloridas e puras (“Não te esqueças – dizia-me a minha mãe - / de estender os teus poemas na varanda:/ fechados, ganham ferrugem e não soam muito bem aos ouvidos”; “E as amoras tinham/ o sabor da aventura/ A língua roxa soletrava/ outras palavras, talvez paixão ou mesmo já amor, / e as mãos com riscos de sangue/ pedindo que incendiássemos/ a tarde das cigarras.”; “No beirado do nosso alpendre havia um gato/ que nos lambia o sol nas mãos.”). Em suma, é um livro que sendo fácil de ler, nos leva a pensar, a reflectir e porque não (?) a agir.” Afinal, como diz o autor: “As nossas viagens aladas são curtas e brancas, / têm a duração da cal efervescente e mais nada. / Restam-nos os desfeitos retratos a sépia.” A que contrapõe, desafiando o futuro: “seremos sempre como papel genuíno de um retrato ainda por tirar.”
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