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Apresentação da nova edição do "Diário", de Sebastião da Gama

Foi em 26 de Março, sábado, que a apresentação da nova edição do Diário, de Sebastião da Gama, obra pela primeira vez completa e anotada, aconteceu no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, iniciativa organizada pela Câmara Municipal de Setúbal, pela Editorial Presença e pela Associação Cultural Sebastião da Gama.
Aqui se reproduz a intervenção de João Reis Ribeiro, responsável pela colecção das "Obras Completas" de Sebastião da Gama, que teve como título inaugural o Diário.
Uma pergunta que me tem sido insistentemente feita é esta: o que traz esta edição do Diário de Sebastião da Gama de novo?
A questão é pertinente, sobretudo quando se sabe que esta obra já anda a ser editada desde 1958, ano em que o professor Hernâni Cidade, que também foi mestre de Sebastião da Gama na Faculdade de Letras em Lisboa, assumiu a sua primeira publicação com a chancela da Ática. Daí para cá, surgiram 13 edições – as duas últimas a cargo da Sebenta Editora –, que possibilitaram muitos leitores e alguns estudos sobre a obra, sobretudo na vertente pedagógica.
Que traz então esta edição de novo? Começarei pelo mais simples. É a primeira vez que o Diário de Sebastião da Gama é publicado na íntegra, dando a conhecer ao público a totalidade desse registo sem cortes, sem omissões. Com efeito, por razões editoriais, nunca esta obra foi publicada na íntegra ao longo destes 53 anos. As duas últimas edições acrescentaram mais alguma coisa ao que vinha sendo publicado, mesmo assim deixando ainda umas quantas páginas manuscritas de fora. Essas razões editoriais levaram a suprir até agora os fragmentos em que Sebastião da Gama reproduzia a mais genuína voz dos alunos, em texto pacientemente copiado das respostas de testes ou de exercícios, mantendo as faltas ortográficas ou sintácticas que os alunos apresentavam e conservando a frescura de alguns comentários.
Fosse porque os alunos eram muito novos na altura da primeira edição, fosse porque nem sempre foi achado interesse às respostas dos alunos, o facto é que essas transcrições foram mantidas em silêncio. Do meu ponto de vista, justifica-se que esta obra seja lida na íntegra porque um dos traços mais fortes da experiência pedagógica aqui relatada passa justamente pela voz que aos outros é dada neste Diário, o que alicerça também aquilo que foi a pedagogia que este poeta e professor pôs em prática. O Diário é um permanente exercício de reflexão sobre o quotidiano do educador e do poeta, que passa pelo diálogo com as respostas dos alunos, com as leituras feitas, que vai procurar formas de resolver problemas nesse mesmo quotidiano. Este Diário é o espaço em que se joga o frente a frente do professor consigo, tentando entender o porquê de ter procedido desta ou daquela forma, experimentando perceber após os acontecimentos o que levou a que o resultado fosse aquele, independentemente de ser bom ou menos bom. Por outro lado, o registo das respostas dos alunos dá colorido e confere autenticidade à história dos dias que vai sendo contada, não constituindo apenas uma recolha das respostas mais certas ou menos certas mas um desvendar o que pretenderiam os alunos dizer ao responderem desta ou daquela forma, um percepcionar o que estaria na base da construção de determinadas respostas e, a partir daí, construir caminhos de exploração.
A segunda característica que esta edição tem é constituída pelo conjunto de anotações, a aproximarem-se das três centenas. Não seriam indispensáveis, por certo, mas creio que enriquecem a leitura por várias vias: a primeira, pelas informações sobre nomes e circunstâncias da época – históricas ou sociais – que, ao longo do texto, se vão cruzando com o quotidiano do professor e vão deixando marca no Diário. Sobretudo para leitores mais novos ou pouco familiarizados com a época em que Sebastião da Gama escreveu ou com a sua biografia, estas notas pretendem acentuar esse colorido dos tempos de forma a não se ficar apenas pela sua espuma, visam prestar informação adicional relacionada com as referências textuais e chamar a atenção para a riqueza de experiências e de interferências que entravam na sala de aula e na reflexão escrita. Relacionada com esta finalidade está a segunda razão das notas, sobretudo daquelas que são orientadas para os autores mencionados e para as obras referidas: enquanto leitor, temos ao nosso alcance a vastidão das referências literárias de Sebastião da Gama, que atravessa várias latitudes e todas as épocas, sempre com a marca da apropriação, do comentário e da justificação. Vai-se-nos impondo o perfil de leitor que Sebastião da Gama também foi, numa relação muito íntima com o que ele pensava ser também a perspectiva cultural do professor, particularmente do professor de Português.
As notas pretendem, pois, fazer também essas chamadas de atenção para a riqueza da experiência de leitor, para uma vida também povoada pelas escritas dos outros, constituindo-se o professor quase como que um espelho antológico de saberes e de cultura.
A terceira marca que esta edição apresenta é a de ser fiel ao original escrito por Sebastião da Gama. Preferi organizar uma edição acessível a todos os leitores em vez de entrar pelo caminho da edição crítica, esmiuçando as alterações ou lapsos que as várias edições anteriores apresentaram. É verdade que houve distracções na transcrição do texto desde a primeira edição. Sebastião da Gama não dactilografou o seu diário, apenas o deixou manuscrito, numa caligrafia bastante legível, ainda que por vezes a pressão do momento ou o tempo que já levava de escrita naquele dia tenham deixado alguns sinais susceptíveis de causar dúvida. Recuperou-se pois a verdade do registo.
Por outro lado, nesta transcrição a partir desse original manuscrito foram também esquecidas as pequenas alterações que povoavam o Diário desde a sua primeira edição. Vou mencionar apenas um exemplo, o mais elaborado – em 24 de Janeiro de 1949, Sebastião da Gama escrevia, a propósito da tarefa de levar os alunos a gostarem de poesia: «E um belo dia acontece que lêem ‘A Moleirinha’ [de Guerra Junqueiro] com os olhos deslumbrados e torcem o nariz ao Silva Tavares.» Ora, o que no registo deste dia tem vindo a constar nas treze edições desta obra é o seguinte: «E um belo dia acontece que lêem ‘A Moleirinha’ [de Guerra Junqueiro] com os olhos deslumbrados e torcem o nariz a um mau poeta.» Ora, a graça de «torcer o nariz ao Silva Tavares» transformou-se no tom sério de «torcer o nariz a um mau poeta», assim se perdendo a leitura que Sebastião da Gama fazia de Silva Tavares, assim se ganhando um epíteto para Silva Tavares como “mau poeta”, que Sebastião da Gama não usou!... Bem sabemos que o mencionado Silva Tavares ainda era vivo na altura; mas também o Diário já era publicação póstuma! Por outro lado, o registo que Sebastião da Gama fez não era tão acentuadamente judicativo como depois veio a ficar…
Finalmente, a última diferença desta edição. Ao longo das onze primeiras edições, não constaram os anexos que Sebastião da Gama incluiu no seu diário, documentos resultantes de leituras feitas, transcrevendo ideias importantes de que ele pretendeu apropriar-se. Nas duas últimas edições, essas anotações de outros autores foram inseridas ao longo do texto, assim se alterando o ritmo de leitura do Diário, às vezes por várias páginas. Neste caso, a opção foi pela inclusão dessas transcrições como anexos no final do volume – omiti-las seria não dar a perceber a construção do professor e deixar vazias de significado algumas referências que vão surgindo no registo dos dias.
De novo, esta edição traz ainda um estudo sobre a obra de Sebastião da Gama e um roteiro cronológico de que ressalta o quanto foi feito numa vida de 27 anos, melhor, num tempo de 13 anos, já que esta tarefa de escrever passa a ser contínua desde 1939 – ano de que se lhe conhecem os mais antigos sonetos – até 25 de Janeiro de 1952, data do seu último texto.
Relativamente ao essencial da mensagem de Sebastião da Gama, esta edição não trará nada de novo talvez. Mas dá ao leitor a possibilidade de, mais meticulosa e atentamente, seguir o percurso verdadeiro que Sebastião da Gama quis legar, aí incluindo o desvendar dos caminhos que o levaram a ser o que foi ou, pelo menos, a ser o que nesta obra nos mostra.
Este Diário é um documento literário: na sua forma, integrando as marcas da escrita diarística; na sua mensagem, revelando um «eu» que comunica e se oferta, deixando muitas vezes ver linhas que estão presentes também na poesia de Sebastião da Gama, sendo mesmo difícil separar o percurso do professor do percurso do poeta.
Relata uma experiência sobretudo pedagógica, onde passam a forma de aproximar a literatura dos jovens, a criação do espírito de leitor, a educação para os valores, a nobreza do acto de educar.
É por todas estas razões que estou convencido de que este livro deveria ser lido por todos os professores, sem destaque para qualquer área específica. Mais: a sua leitura é recomendada a todos quantos se interessem pelas questões da educação, independentemente da função que nesse universo desempenham. Creio que, nos corredores da sociedade, se ganharia muito quando se falasse de educação depois de pensar com Sebastião da Gama…
Em boa hora a Editorial Presença aceitou encetar a publicação das «obras completas» de Sebastião da Gama pelo Diário. Daqui a onze títulos, teremos ao dispor do público o quanto o poeta da Arrábida produziu, mas começar pelo Diário, quando são passados mais de 60 anos sobre a sua escrita, é uma forma de olhar para o que de bom há na literatura portuguesa sobre educação, produzido com sensibilidade, comunicando sentimentos, partilhando experiências positivas e… com a frescura de ser um documento actual a exigir ser lido!
Professor que sou, era um diário como este que gostaria de ter escrito no momento em que esgotasse a minha profissão!

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