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Porque ler o “Diário” de Sebastião da Gama, segundo Cruz Malpique

Em 1965, Cruz Malpique (1902-1992), o reconhecido nisense e professor do Liceu Alexandre Herculano, no Porto, publicava o livro Mestres e Discípulos (Porto: Divulgação, 1965), cerca de 230 páginas de reflexão sobre a profissão docente, nas vertentes pedagógica e deontológica. Um dos mais longos capítulos aí inseridos, ocupando cerca de quatro dezenas de páginas, intitula-se “Sebastião da Gama, Professor-Poeta” e faz uma peregrinação pelo Diário, que fora publicado havia sete anos (apesar de maioritariamente escrito no estágio que decorreu entre Janeiro de 1949 e Fevereiro de 1950, esta obra de Sebastião da Gama só seria publicada postumamente, em 1958).
A viagem de Cruz Malpique por esta obra é de tal forma condicionada pela sua mensagem que o autor se deixa levar pelas longas citações de Sebastião da Gama, assumindo-as como testemunhos e verdades de referência para o que é ser professor, desde o início erguendo como princípio que “outros diários existissem desse teor e teríamos aí admiráveis repositórios psicopedagógicos, dos quais muitos candidatos ao magistério poderiam extrair extraordinário proveito.”
Cruz Malpique destaca dois valores na pedagogia do professor de Azeitão: a lealdade e a “alma aberta”, ingredientes indispensáveis a uma educação em que o amor pontifica, um e outro cimentados pela referência maior da poesia. É desse capítulo que para aqui trago algumas citações, quer pelo seu valor na história da pedagogia, quer por causa do apelo a valores que norteiam a formação da pessoa. E ainda por um desafio que, à distância, mantém actualidade: “Todos os professores deveriam escrever os diários das suas aulas, dando notícia do como fizeram, do como reagiram os alunos, e tudo isso deveria ser dito muito objectiva e veridicamente, sem narcisismos.” Talvez esta fosse uma boa maneira de um professor poder reflectir sobre a sua prática, sobre os seus alunos, muito mais frutuosa do que as carradas de burocracia e de papelada que atafulham a educação e a vida da escola. – JRR

Citações de Cruz Malpique
LEALDADE – "(…) Sebastião da Gama, que foi estruturalmente uma alma sincera, lealíssima consigo mesma e com o seu semelhante, não podia deixar de pedir aos alunos que cultivassem a lealdade. (…)"
ALMA ABERTA – "(…) Queria fraternidade entre os homens, aproximação simpática, intimidade, em vez de indiferença, distância. Nele havia muito da psicologia do franciscano, não só na fraternidade com que tratava o seu semelhante, mas até na humanidade com que descrevia a paisagem. (…)"
SIMPATIA PELO COLÓQUIO – "(…) Detestava o solilóquio, queria o colóquio. Queria que na aula todos tivessem papel bem activo, de colaboração efectiva, de presença espiritual (…). Na bondade via Sebastião a qualidade mestra do professor. (…)"
POESIA E PEDAGOGIA – "(…) A poesia era nele um natural estado de alma, o seu próprio tecido psicológico. (…) Sebastião era professor, como foi poeta, por espontânea e irresistível vocação. (…) Leccionando, fez sempre poesia – poesia viva – da melhor. E, poetando, fez sempre o magistério da sinceridade. (…) Dentro da sua filosofia da sinceridade, não estava com meias medidas e, se dava boas aulas, louvava-se, e quando as dava más não deixava de se censurar (…)."
LINGUAGEM DA PERSUASÃO – "Sebastião seguia, com o mais vivo interesse, os alunos de tendências reprováveis. Dentro de uma política de bondade, de inteligência e cálida persuasão, procurava trazê-los ao bom caminho. (…) Amparar e aconselhar era o seu sistema – de resultados eficientes. (…) Sebastião nunca se furtou, antes nisso punha extraordinário gosto, a elogiar as qualidades dos seus discípulos, aquilo que neles havia de prometedor. (…) Sebastião, como poeta, como homem de coração, como bom psicólogo, tinha sagrado respeito pela personalidade dos seus educandos. Entendia que é preciso ajudar a formar, de maneira construtiva, as personalidades nascentes. (…) A sinceridade foi a nota fundamental em Sebastião da Gama. A sinceridade tocada de um arzinho de doce ironia. (…)"
MEMÓRIA – "Sebastião da Gama, em boa verdade, começou a viver – e com credenciais para a perenidade – no dia em que morreu da morte física (…), está agora renascendo todos os dias e a toda a hora, na obra que nos deixou.”

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